Precisamos fortalecer a Atenção Primária à Saúde para enfrentar a Covid-19

Leia o artigo de nossa Analista de Saúde, Carolina Motta

Desde a chegada do novo coronavírus ao Brasil, os olhares voltaram-se completamente para os hospitais: (ainda) é preciso equipá-los, ampliar o número de leitos de UTI, garantir que os profissionais de saúde tenham equipamentos de proteção individual suficientes para se preservarem e atenderem os pacientes com segurança. Todas essas necessidades são primordiais para o enfrentamento à epidemia.

Mas, então, por que falar em Atenção Primária nesse contexto?

A Atenção Primária à Saúde (APS) tem como atributos essenciais a atenção no primeiro contato, a longitudinalidade, a integralidade e a coordenação do cuidado e, como atributos derivados, a orientação familiar e comunitária e a competência cultural. Ou seja, é a atenção primária a responsável pelo acompanhamento de cada família em seu território, ao longo de suas vidas.  

A transmissão do coronavírus acontece nas comunidades, pelo convívio cotidiano, e a atuação apenas a partir do modelo hospitalocêntrico tem se mostrado insuficiente para conter sua expansão, como observamos em países como Itália e Espanha. A intervenção precoce torna-se essencial, especialmente neste momento em que a epidemia começa seu movimento de interiorização, rumo a municípios que sequer contam com uma rede hospitalar capaz de socorrer pacientes graves. Nesse sentido, a Atenção Primária à Saúde –  em especial a Saúde da Família – é nossa grande aliada nesse enfrentamento.

Um dos principais eixos de atuação da Atenção Primária à Saúde diante da epidemia seria a intensificação das ações de vigilância em saúde. A Estratégia Saúde da Família, com seu caráter comunitário, tem a capacidade de mobilizar lideranças nas comunidades, buscar soluções conjuntas com cada território, apoiar a notificação e monitorar os casos suspeitos.

O Agente Comunitário em Saúde é um profissional chave nesse elo com a comunidade. Seu papel pode ser tão importante que um artigo recente publicado no Lancet, propõe que o Reino Unido contrate Agentes Comunitários para atuar emergencialmente junto ao National Health Service (NHS), contra a Covid-19, apoiando as famílias em suas casas – e cita a exitosa experiência do Brasil nos últimos anos.

Outro papel fundamental da Atenção Primária à Saúde é a possibilidade de oferecer suporte a grupos mais frágeis e vulneráveis. Cada equipe de Saúde da Família sabe quantos idosos tem em seu território, quantas pessoas acompanhadas pelo Bolsa Família e onde mora cada um deles. Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família podem ter papel importante no apoio psicológico e assistencial, além da mobilização da comunidade para apoiar essas pessoas.

Por fim, a APS precisa dar continuidade às suas próprias ações, coordenando o cuidado dos casos que já demandam mais atenção e não podem ficar desassistidos. Usuários com doenças crônicas, idosos, gestantes e crianças precisam continuar seus acompanhamentos no território, inclusive para não buscarem atendimentos emergenciais nos hospitais e UPAS.

Nossa experiência, no Instituto Desiderata, com o câncer infantojuvenil sempre nos mostrou a importância da Atenção Primária na detecção precoce dos casos. Uma APS forte, com profissionais de saúde capacitados para identificação dos sinais e sintomas do câncer infantojuvenil é essencial para que as crianças cheguem em tempo oportuno aos hospitais de referência. Nos últimos anos, capacitamos 4091 profissionais da ESF no estado do Rio de Janeiro e estudamos, neste momento, a possibilidade de manter as capacitações em formato de ensino à distância. O olhar atento aos casos, afinal, precisa continuar mesmo diante da pandemia.

Por outro lado, há também um risco importante da própria APS se tornar vítima e/ou disseminadora da doença. Em carta ao Ministério da Saúde, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) aponta que a experiência de outros países tem mostrado que minimizar o contato presencial entre profissionais de saúde e usuários com síndrome respiratória aguda grave, bem como evitar aglomeração de pessoas nestas unidades, é crucial para impedir a propagação do vírus. Nesse sentido, a APS precisa se reinventar, ela deve estar aberta, mas de forma diferente. As possibilidades de atuação são múltiplas: teleatendimento, porta de entrada específica de sintomáticos, divisão de equipes. A Superintendência de Atenção Primária à Saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro desenvolveu um Plano de Contingência para apoiar as equipes de APS na continuidade do cuidado no atual contexto. No entanto, pesquisadores apontam que não há uma solução única, a atuação possível de cada equipe dependerá de seu contexto e dos recursos disponíveis.

Infelizmente, nos últimos anos, o que temos acompanhado é uma desestruturação das políticas sociais. No Sistema Único de Saúde (SUS), a Emenda Constitucional 95 impôs limites ainda maiores de financiamento, com impactos significativos no acesso e saúde da população. O Programa Previne Brasil, lançado no final do ano passado pelo Ministério da Saúde trouxe novas medidas de financiamento para APS, deixando de repassar incentivos diretos para a implantação e custeio de equipes de Saúde da Família e Núcleo de Apoio à Saúde da Família. No município do Rio de Janeiro, os profissionais da APS de diversas áreas programáticas estão com salários atrasados, que funcionam com equipe e atendimento reduzido.

Se desejamos mostrar ao mundo a resposta à epidemia em um sistema com cobertura universal e capilaridade como o nosso, precisamos agora, mais do que nunca, fortalecê-lo. Os recursos precisam estar disponíveis a todos, os profissionais da APS precisam ser valorizados e capacitados para o novo contexto. Enquanto sociedade civil, é nosso papel defender o SUS e uma Atenção Primária forte, universal integral e abrangente.